“Quando a alma está feliz, a prosperidade cresce, a saúde melhora, as amizades aumentam, enfim, o mundo fica de bem com você. O mundo exterior reflete o universo interior.”
(Mahatma Gandhi)
Quando eu comecei a treinar Aikido, há pouco mais de sete anos, o que mais me importava na época era aprender as técnicas e passar logo às faixas seguintes. Creio que esse tipo de expectativa prevaleça em grande parte das pessoas que iniciam em uma arte marcial, visto que o principal objetivo de quem procura um local para praticá-la é desenvolver as habilidades de se defender e lutar.
No entanto, logo no começo percebi que o Aikido era uma arte marcial muito distinta e com algumas peculiaridades, o que, no primeiro momento, pode causar estranheza em algumas pessoas acostumadas com outras artes mais populares e mais difundidas no Brasil. A minha primeira impressão não foi diferente, durante os primeiros treinos eu também achava algumas coisas bem esquisitas, todavia, à medida que os anos foram passando, pouco a pouco o meu ponto de vista foi mudando, tanto que aquela ansiedade inicial de querer “progredir” atropelando o tempo de cada etapa foi se dissipando dos meus pensamentos.
Depois de um tempo comecei a enxergar o Aikido por um novo prisma, algo como uma espécie de lapidação moral que acontece por meio do treinamento constante e com afinco. Passei a identificar o Aikido como um budo, também denominado de “Caminho do Guerreiro”.
O Do é um Caminho de iluminação inspirado pela filosofia zen budista, cujo o principal propósito é elevar o espírito do praticante à superioridade. Sendo que, nesse aspecto, a sinergia entre a consciência e o corpo tem um importante papel.
No Aikido, busca-se estabelecer a unidade entre esse fenômeno sinérgico e as leis naturais, almejando desenvolver a concentração e o relaxamento a fim de se realizar as técnicas.
No budo, a mente equivale a um estado de espírito. E todo praticante, deve desenvolver cinco estágios fundamentais dela, como condição essencial para a sua formação no Caminho.
Shoshin é a mente de principiante, que consiste na disposição para aprender. Infelizmente, somente depois de muito tempo de treino consegui me dar conta da importância desse espírito para o meu próprio desenvolvimento. Até então, quando eu conseguia executar algo novo, um sentimento de autossuficiência me dominava, o que certamente me impedia de progredir e me causava frustração.
Por sorte, ou melhor dizendo, por desígnio do Aikido, passei a abjugar dos meus pensamentos as frustrações inerentes à rotina de treinamentos – o que me fez começar a tirar experiências positivas das minhas falhas. Suponho eu que isso também seja uma forma de manifestação de Shoshin.
Outra coisa que me chamava muito a atenção durante os primeiros meses de treino, era a ênfase que se dava ao termo Zanshin, sempre associado ao kamae durante a execução das técnicas.
Certa vez eu li que antigamente no Japão havia um ditado que dizia: “Depois de vencer a batalha, aperte o seu capacete.”
Passei vários dias refletindo sobre o significado desse provérbio, pois como ocidental, era difícil pra mim imaginar esse tipo de reação numa situação como essa. Talvez o mais provável, pela minha lógica, fosse relaxar e recuperar as forças. No entanto, descobri que Zanshin quer dizer mente contínua, ou seja, o espírito de vigília que deve ser mantido de maneira constante e sempre com a mesma intensidade, independente se algo está terminado ou prestes a começar.
Também ao longo desses anos, quando eu tentava executar uma técnica e não conseguia, as vezes eu ouvia o meu Sensei dizendo: “Não pense em nada. Só faça!”
Imagino que pelo menos uma única vez na vida todo aluno de Aikido já tenha escutado algo parecido de seu Sensei. Isso talvez ocorra porque nós, ocidentais, estamos acostumados a pensar de maneira metódica para fazer algo que seja aparentemente mais complexo.
Mushin é a mente vazia, que corresponde a um estado de inconsciência consciente. Ela representa a capacidade de se concentrar na plenitude do todo e não somente em partes dele.
Outra característica interessante nas classes de Aikido é o uso de termos frequentemente mencionados em japonês, que para a maioria dos iniciantes não faz o menor sentido no começo. Um que me deixou muito curioso para saber do que se tratava é Fudoshin, a mente inabalável.
Ao pesquisar a respeito de Fudoshin, logo me veio à mente a figura dos antigos samurais, que viviam em busca da primazia para a sua existência.
Um samurai era reconhecido por sua destreza com a espada, entretanto outra característica muito marcante era a sua capacidade de manter a calma durante as batalhas mais violentas, o que talvez representasse o conceito de Fudoshin. Num praticante de Aikido esse estado da mente pode ser demonstrado por meio de uma postura muito bem consolidada, de modo que ele é capaz de sofrer um ataque vigoroso e ainda assim, conseguir reverberar suavemente essa ação de volta ao seu ponto de partida, mantendo o completo domínio do seu espaço.
Durante a minha pesquisa para elaborar esta tese de aspirante ao primeiro degrau, identifiquei um quinto espírito, Senshin, que confesso não tinha ouvido falar até então.
Se houvesse uma escala de classificação, Senshin estaria no patamar mais elevado, correspondendo a um espírito totalmente purificado, ou seja, algo aparentemente inalcançável para a maioria das pessoas comuns.
No âmbito do Aikido, Ó-Sensei deve ser um dos poucos exemplos, se não o único, com esse nível de desenvolvimento espiritual, ou pelo menos, com profunda compreensão sobre esse elevado estado mental. Senshin é o espírito capaz de gerar a concordância entre o indivíduo e o universo, representando a idealização do Fundador para o Aikido, com o propósito de unir o mundo todo como uma só família.
Ainda que não sejam comuns abordagens explicativas sobre esse tema durante as classes, o desenvolvimento desses cinco espíritos faz parte do treinamento sério e disciplinado do Aikido, que tende a desenvolver no praticante o sentido de Shoshin, que se sobrepõe ao ego e ao pedantismo inato de cada pessoa, assim como o Zanshin, que o faz compreender que um objetivo não é um ponto final, o fim de verdade consiste na falta de atitude, no esmorecimento e na desistência diante das adversidades.
O Aikido também desenvolve no aluno a capacidade de esvaziar a sua mente, sem se desligar do seu senso, possibilitando a abstração de todas as distrações possíveis e fazendo com que a consciência se torne totalmente desapegada do egocentrismo e de seus julgamentos e ponderações. Além disso, estimula no praticante o espírito de coragem para enfrentar as suas próprias dificuldades ao invés de evitá-las.
O ápice do treinamento de Aikido é representado por Senshin, através do pleno refinamento moral do praticante.
Uma coisa boa na elaboração deste trabalho, é que pude fazer a seguinte reflexão: eu ainda sou um simples aspirante a aprendiz, que almeja um dia alcançar o desenvolvimento desses espíritos (pelo menos dos quatro primeiros). Porque uma coisa é compreender teoricamente o conceito de cada um deles, outra, muito mais difícil, é desenvolvê-los de fato, e eu ainda estou muito longe disso.
Contudo, nesses poucos anos praticando, já foi possível perceber que como Caminho de Iluminação, o Aikido se contrapõe à agressividade, à arrogância, ao individualismo, à vaidade e a todo e qualquer instinto de emulação. A sua prática requer espírito de cooperação mútua, concentração e compromisso sincero com a Verdade, estimulando o praticante a exercitar o autoconhecimento e a desenvolver sempre um bom coração dentro de si.
Aikido é um exercício de sabedoria, um processo de educação da mente, um aprendizado profundo e incessante que possibilita o aprimoramento de tudo que pode ser tornado melhor, inclusive a si próprio.
Portanto, é necessário viver o Aikido para compreendê-lo. E acredito que alcançar essa compreensão deva significar o êxito, não apenas como praticante, mas também como ser humano, fazendo com que o estado de harmonia interior seja refletido na vida familiar, profissional e social.
E, considerando de modo geral a minha vida antes do Aikido e agora, neste exato momento, concluo que a experiência tem sido formidavelmente positiva. Porém, como nem tudo são flores, nos últimos anos eu também passei por momentos tristes e atribulados. Perdi meu pai, familiares e amigos queridos. Desmoronei por dentro quando a minha esposa descobriu que tinha câncer e agora mais recentemente com a minha irmã enfrentando o mesmo problema.
Mas tenho a certeza de que durante essas adversidades o Aikido também me ajudou a ser resiliente e ter a serenidade e o discernimento necessários para lidar com cada situação da melhor forma. Além disso, eu descobri um sentido mais amplo para o treinamento de ukemi – não importa quantas vezes a vida me derrube, eu sempre vou estar apto a me levantar.
Hoje, sinceramente eu não consigo pensar num mundo melhor para as pessoas sem Caminhos como o Aikido. Da mesma forma que não me imagino mais vivendo sem esse Caminho.
Sei que estou apenas no comecinho da caminhada, mas tenho uma grande expectativa de que mais coisas magníficas estão por vir.
Também sei que possivelmente a minha existência neste plano se encerre antes que eu vislumbre o final desse trajeto (se é que esse final existe). Mas isso pouco importa agora, pois o importante mesmo é seguir em frente e desfrutar da caminhada, pois cada ínfimo instante desse Caminho vale muito a pena, tanto que se por algum motivo fosse necessário ter que refazer cada momento desde o meu primeiro dia, derramar novamente cada gota de suor que derramei, sentir mais uma vez todas as dores que senti, eu passaria por tudo isso de novo com um enorme sentimento de satisfação em meu coração…
Em relação à maioria das artes marciais atuais, o Aikido tem uma peculiaridade, que pra mim é uma das mais marcantes e que eu aprendi a tê-la como referência dentro e fora do ambiente do Dojo – a gratidão. Aqui eu passei a perceber essa atitude, que é tão comum entre pessoas, como uma das mais valiosas demonstrações de apreço que se pode ter por alguém, portanto, externo aqui a minha imensurável gratidão: primeiramente a Deus por me conceder a saúde e a disposição necessárias para viver essa sublime experiência que é o Aikido; a Morihei Ueshiba, que através do Aikido nos deixou a sua iluminação e difundiu a filosofia que hoje inspira a minha vida; mais que especialmente ao meu Sensei Joacir Marques, não apenas por ter me aceitado como seu aluno e por todas as orientações que me transmitiu ao longo desses sete anos, mas também por seu espírito incansável de dedicação ao Aikido e por tudo o que ele realizou e construiu para o desenvolvimento dessa nobre arte em nossa cidade até hoje; a todos os Senseis que por aqui passaram e aos amigos de outros estados do Brasil, que transpuseram a barreira da distância geográfica para compartilhar um pouco de suas experiências e energia conosco; aos meus senpais e kōhais, que sem a cooperação e a paciência deles comigo, este momento jamais aconteceria; a todos os amigos que o Aikido me proporcionou, pois eles são verdadeiras dádivas dessa caminhada; em memória dos meus pais, que sempre me instruíram pela senda do bem, transmitindo-me preceitos cristãos e exemplos de princípios como a honestidade, a perseverança, o respeito ao próximo, o valor ao trabalho árduo, a lealdade aos amigos e a dedicação à família; por fim, à minha esposa Débora e ao meu filho Matteus – que são o meu bem mais valioso neste mundo – pelo apoio e a compreensão que tiveram durante os momentos em que precisei me abster de suas companhias para me dedicar ao aprendizado do Aikido.
A todos vocês a minha eterna gratidão e o meu afetuoso e forte abraço.